domingo, 16 de agosto de 2015

Resenha: A Máquina Diferencial: tão interessante quanto analisar uma máquina para estudante de humanas



No ano passado, durante a Comic Com Experience em São Paulo tive a oportunidade de conhecer o estande e, consequentemente, o magnífico catálogo da Editora Aleph. Sem peso no coração, sai de lá com diversos volumes sob os braços. Um desses volumes era o Neuromancer, de William Gibson. Apesar de essa resenha não ser sobre ele, ele nos diz muito sobre o que virá. Pois Neuromancer é aquela história: uma trama muito boa com uma leitura horrível. 

A Maquina Diferencial





            Pois bem, sobrevivendo a esse livro, apesar da tortura que foi lê-lo, navegando pelo catálogo da editora novamente, uma obra intitulada A Máquina Diferencial me chamou a atenção. Escrita por Gibson em parceria com Bruce Sterling (também um dos precursores do cyberpunk – subgênero da ficção científica), a premissa é muito boa. É um romance steampunk, cuja história mescla fatos e personagens reais em meio a uma sociedade do século XIX movida a vapor e máquinas avançadas. É uma história alternativa à história real, com a diferença que nesse caso, a máquina diferencial de Charles Babbage teria dado certo[1]. Apesar de parecer interessante e ter essa aura steampunk, (que até agora eu só vira em filmes, mas nunca havia lido) fiquei muito receosa, já que Gibson tem um jeito muito peculiar de escrever. Mas como podem ver, acabei me entregando ao romance.

            E seria melhor se não tivesse. Mas vamos por partes. Quanto à leitura, voilá, novamente cheia de termos novos e totalmente inexplicados dentro da trama (pelo menos há um glossário no final do livro) como Neuromancer (ainda que menos complicado que esse). Ainda dentro do âmbito da compreensão, há alguns fatos históricos que são imprescindíveis à trama, e caso o leitor não esteja familiarizado com eles, provavelmente vá compreender muito pouco do que está acontecendo. O primeiro capítulo, por exemplo, cita a Guerra de Secessão americana, a Revolução Texana e todos seus termos que tiver direito. É necessário, portanto, recorrer a uma breve pesquisa antes de seguir pelo capítulo.

            Quanto ao visual steampunk, é mal trabalhado. Os autores focam muito em utilizar palavras difíceis e pouco em criar uma imagem sólida para o leitor. Por se tratar de uma sociedade que não conhecemos na realidade, faltam descrições mais detalhadas e há, curiosamente, uma grande disposição para descrever quase tudo como azul (cor que raramente está presente na estética steampunk, mas afinal, eles não estão entre os criadores do gênero? Vale conferir a fundo essa “exclusão” da cor nas representações mais recentes do gênero).

            Saindo agora dessa parte técnica, vamos aos personagens. Bem, a trama não tem um protagonista fixo. Nos deparamos com três personagens “mais” principais em seu desenrolar, mas quando estamos começando a gostar deles, acaba o capítulo e esse protagonista momentâneo é deixado de lado. Voltam a se reencontrar, se deparam com outros muitos personagens, dificultando as associações, mas a trama nunca foca em algum personagem, mas sim no que está acontecendo na sociedade e política. Isso contando com o fato de que há muitas caras conhecidas na trama, como Lord Byron (então primeiro ministro da Inglaterra), Thomas Henry Huxley (avô de Aldous), entre muitos outros personagens históricos e fictícios que têm suas histórias modificadas. É então como se todos os personagens fossem apenas meios necessários para se contar a história, mas nunca o foco dela. Essa estratégia é compreensível, mas infelizmente deixa tudo muito chato. Pois, caso os personagens fossem fracos dessa forma, mas a trama forte e engajada, tudo estaria justificado, mas a trama não é. Por todo momento da leitura eu me sentia deslocada, tentando entender aonde é que os autores queriam chegar com aquilo. E a resposta era sempre a mesma: nenhum lugar. Em alguns momentos eu me senti como novamente assistindo Lost: tanta informação nova, mas nenhuma resolvida (não é a toa que parei de assistir essa séria na terceira ou quarta temporada). Além dessa informação nova sempre jogada ao ar, há trechos que parecem totalmente desconexos e desnecessários. Sem falar que os autores superestimam a capacidade de entendimento do leitor, já que deixam tanta coisa sem explicação, quando na verdade falta um aprofundamento.

            Quanto aos “vilões” da trama, são sempre revoltosos, luditas (pessoas que eram contra a mecanização da produção e assim atacavam indústrias e máquinas) ou ainda comunistas e estão sempre conectados a adjetivos pejorativos e baixos. São prostitutas e bandidos. O livro é bastante tendencioso nesse sentido. Os mocinhos são sempre homens da alta sociedade, policiais e políticos.

            No prólogo do livro, os autores explicam que, ao se depararem com a dúvida de qual dos dois escreveria o romance, optaram por escrevê-lo juntos pelo computador (a obra foi escrita em 1991), transformando também o narrador da trama em simplesmente um computador. Esse narrador-máquina justificaria todo esse recorte de cenas e sub-tramas e a crueza da escrita. Mas para mim, não convenceu. Pode ser que eu não tenha entendido? Pode. O livro tem uma complexidade imensa e dificilmente algum leitor vai ser capaz de absorver todas as referências existentes ali.  Mas toda essa condensação de informação gera um efeito rebote: fala tanto que parece que não fala nada. Realmente não acredito que a chave para  entender a história por completo seja quebrar todas as referências, a não ser que o livro funcione como uma máquina, que para ser compreendido deva ser esmiuçado. Não estou disposta a isso, de qualquer forma.

            Se você pedir para que eu faça um resumo da história, eu mal conseguiria. Sua linha evolutiva  é capenga, não há um ápice e nem uma conclusão clara. As perguntas que são levantadas não são respondidas e a revelação do maior mistério que percorre a trama é que não há resposta. O importante é que há alguns cartões misteriosos (que não são lidos pela máquina comum da sociedade, mas sim por outro tipo francês) e que são escondidos e procurados pelos personagens por toda a trama. Basicamente esse é o motor desta. Fora isso, muita coisa desnecessária, são quase 450 páginas.

            Mas como já disse, posso não ter o compreendido. Mas assim como eu, acredito que muitos outros leitores também não entenderiam. Se é que há realmente algo a ser compreendido além do que está ali. E é por isso que apenas recomendo essa leitura para quem esteja muito disposto, tanto a pesquisar as inúmeras referências, quanto a se perder na leitura por tão desinteressante que ela é. Quando eu voltava a ler, no dia seguinte à última leitura, já não lembrava onde havia parado. E eu lia todos os dias (pelo menos no começo). Cheguei a levantar duas questões: será que Gibson realmente escreve mal e apesar de ter boas ideias tem dificuldade em executá-las, ou um pouco da culpa seria por parte da tradução? Não sei. Mas convido aos corajosos a lerem, e aos que já leram, a me dizer se estou muito errada.  






[1] Uma forma primordial de computador criada em meados do século XIX

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