No ano passado, durante a Comic Com Experience em São Paulo
tive a oportunidade de conhecer o estande e, consequentemente, o magnífico
catálogo da Editora Aleph. Sem peso no coração, sai de lá com diversos volumes
sob os braços. Um desses volumes era o Neuromancer, de William Gibson. Apesar
de essa resenha não ser sobre ele, ele nos diz muito sobre o que virá. Pois
Neuromancer é aquela história: uma trama muito boa com uma leitura horrível.
A Maquina Diferencial |
Pois bem,
sobrevivendo a esse livro, apesar da tortura que foi lê-lo, navegando pelo
catálogo da editora novamente, uma obra intitulada A Máquina Diferencial me
chamou a atenção. Escrita por Gibson em parceria com Bruce Sterling (também um
dos precursores do cyberpunk – subgênero da ficção científica), a premissa é
muito boa. É um romance steampunk, cuja história mescla fatos e personagens
reais em meio a uma sociedade do século XIX movida a vapor e máquinas
avançadas. É uma história alternativa à história real, com a diferença que
nesse caso, a máquina diferencial de Charles Babbage teria dado certo[1].
Apesar de parecer interessante e ter essa aura steampunk, (que até agora eu só
vira em filmes, mas nunca havia lido) fiquei muito receosa, já que Gibson tem
um jeito muito peculiar de escrever. Mas como podem ver, acabei me entregando
ao romance.
E seria
melhor se não tivesse. Mas vamos por partes. Quanto à leitura, voilá, novamente
cheia de termos novos e totalmente inexplicados dentro da trama (pelo menos há
um glossário no final do livro) como Neuromancer (ainda que menos complicado
que esse). Ainda dentro do âmbito da compreensão, há alguns fatos históricos
que são imprescindíveis à trama, e caso o leitor não esteja familiarizado com
eles, provavelmente vá compreender muito pouco do que está acontecendo. O
primeiro capítulo, por exemplo, cita a Guerra de Secessão americana, a
Revolução Texana e todos seus termos que tiver direito. É necessário, portanto,
recorrer a uma breve pesquisa antes de seguir pelo capítulo.
Quanto ao
visual steampunk, é mal trabalhado. Os autores focam muito em utilizar palavras
difíceis e pouco em criar uma imagem sólida para o leitor. Por se tratar de uma
sociedade que não conhecemos na realidade, faltam descrições mais detalhadas e
há, curiosamente, uma grande disposição para descrever quase tudo como azul
(cor que raramente está presente na estética steampunk, mas afinal, eles não
estão entre os criadores do gênero? Vale conferir a fundo essa “exclusão” da
cor nas representações mais recentes do gênero).
Saindo agora
dessa parte técnica, vamos aos personagens. Bem, a trama não tem um
protagonista fixo. Nos deparamos com três personagens “mais” principais em seu
desenrolar, mas quando estamos começando a gostar deles, acaba o capítulo e
esse protagonista momentâneo é deixado de lado. Voltam a se reencontrar, se
deparam com outros muitos personagens, dificultando as associações, mas a trama
nunca foca em algum personagem, mas sim no que está acontecendo na sociedade e
política. Isso contando com o fato de que há muitas caras conhecidas na trama,
como Lord Byron (então primeiro ministro da Inglaterra), Thomas Henry Huxley
(avô de Aldous), entre muitos outros personagens históricos e fictícios que têm
suas histórias modificadas. É então como se todos os personagens fossem apenas
meios necessários para se contar a história, mas nunca o foco dela. Essa
estratégia é compreensível, mas infelizmente deixa tudo muito chato. Pois, caso
os personagens fossem fracos dessa forma, mas a trama forte e engajada, tudo
estaria justificado, mas a trama não é. Por todo momento da leitura eu me
sentia deslocada, tentando entender aonde é que os autores queriam chegar com
aquilo. E a resposta era sempre a mesma: nenhum lugar. Em alguns momentos eu me
senti como novamente assistindo Lost: tanta informação nova, mas nenhuma
resolvida (não é a toa que parei de assistir essa séria na terceira ou quarta
temporada). Além dessa informação nova sempre jogada ao ar, há trechos que
parecem totalmente desconexos e desnecessários. Sem falar que os autores
superestimam a capacidade de entendimento do leitor, já que deixam tanta coisa
sem explicação, quando na verdade falta um aprofundamento.
Quanto aos
“vilões” da trama, são sempre revoltosos, luditas (pessoas que eram contra a
mecanização da produção e assim atacavam indústrias e máquinas) ou ainda
comunistas e estão sempre conectados a adjetivos pejorativos e baixos. São
prostitutas e bandidos. O livro é bastante tendencioso nesse sentido. Os
mocinhos são sempre homens da alta sociedade, policiais e políticos.
No prólogo
do livro, os autores explicam que, ao se depararem com a dúvida de qual dos
dois escreveria o romance, optaram por escrevê-lo juntos pelo computador (a
obra foi escrita em 1991), transformando também o narrador da trama em
simplesmente um computador. Esse narrador-máquina justificaria todo esse
recorte de cenas e sub-tramas e a crueza da escrita. Mas para mim, não
convenceu. Pode ser que eu não tenha entendido? Pode. O livro tem uma
complexidade imensa e dificilmente algum leitor vai ser capaz de absorver todas
as referências existentes ali. Mas toda
essa condensação de informação gera um efeito rebote: fala tanto que parece que
não fala nada. Realmente não acredito que a chave para entender a
história por completo seja quebrar todas as referências, a não ser que o livro funcione como
uma máquina, que para ser compreendido deva ser esmiuçado. Não estou disposta a
isso, de qualquer forma.
Se você
pedir para que eu faça um resumo da história, eu mal conseguiria. Sua linha
evolutiva é capenga, não há um ápice e nem uma conclusão clara. As
perguntas que são levantadas não são respondidas e a revelação do maior
mistério que percorre a trama é que não há resposta. O importante é que há
alguns cartões misteriosos (que não são lidos pela máquina comum da sociedade,
mas sim por outro tipo francês) e que são escondidos e procurados pelos
personagens por toda a trama. Basicamente esse é o motor desta. Fora isso,
muita coisa desnecessária, são quase 450 páginas.
Mas como já
disse, posso não ter o compreendido. Mas assim como eu, acredito que muitos
outros leitores também não entenderiam. Se é que há realmente algo a ser
compreendido além do que está ali. E é por isso que apenas recomendo essa
leitura para quem esteja muito disposto, tanto a pesquisar as inúmeras
referências, quanto a se perder na leitura por tão desinteressante que ela é.
Quando eu voltava a ler, no dia seguinte à última leitura, já não lembrava onde
havia parado. E eu lia todos os dias (pelo menos no começo). Cheguei a levantar
duas questões: será que Gibson realmente escreve mal e apesar de ter boas
ideias tem dificuldade em executá-las, ou um pouco da culpa seria por parte da
tradução? Não sei. Mas convido aos corajosos a lerem, e aos que já leram, a me dizer
se estou muito errada.
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